domingo, 18 de fevereiro de 2007

O cofre

A noite fez um intervalo e acordou-me para me lembrar que tinha sede. Ao meu lado, rangias os dentes com a habitual agitação do sono. A sede levou o meu corpo ao colo até ao sítio onde eu ouvia sempre aquela voz - "Esta água desliza tão bem na garganta... Posso mor?" - , mas nessa noite o garrafão estava mudo e a água já tinha sido toda chorada. O coração disparou ao som desmesurado daqueles passos maldosos da lembrança que nunca se cansa de me assustar. Precipitei-me a olhar para nós e as lágrimas saltaram logo. Corri para o quarto e abanei-te a tranquilidade. A minha inquietude berrava à tua calma: P o cofre está vazio! Acorda! ACORDA! Uns gemidos de birra depois e abrias finalmente os olhos. "O quê? Joana dorme por favor. Tu e os pesadelos... Ainda é cedo!". Odiava quando tu e o relógio faziam aquele estúpido complô para me desarmar. Tinha precisamente meio minuto para me explicar ou o peso do teu sono vencia o meu desespero. Já te viravas para o outro lado. P não entendes? O nosso cofre foi roubado! O Amor não está lá... Os olhos pesaram-te de vez, mas não foi de sono. Tentei, em vão, encaixar neles uma palavra, mas Tristeza andava longe e Vergonha não cabia. "Esqueci-me de te dizer... Eu levei-o comigo na viagem e... Perdi-o." A minha alma quase sufocou antes de cair no chão. Eu estava descalça e ainda me cortei a apanhar os cacos. "Tem calma Joana, tens conserto." - a tua voz sofria um daqueles momentos em que a garganta arranha como a do teu pai, parecendo ainda mais grave. E nós temos conserto? Lembraste onde o deixaste? Eu encontro-o, não te preocupes. Vou e venho de avião e amanhã à noite está(mos) de volta. Mas aquela mão que tanto me amou pesou-me no ombro e deu a notícia do óbito. "Vá não fiques assim... Deita-te no meu peito pequena. Aproveita... Amanhã já não és menina. Não estarei mais aqui."
Afinal sempre (me) partiste.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

e depois eu

e depois o sol a morrer e a ponte ainda viva
um derradeiro raio de luz que se demora mais um pouco
nos olhos de quem vê o agora e não sabe se voltará a ver amanhã
uma lágrima a cair no desespero da cara molhada onde
corre o silêncio - esse doloroso som - que quebra a rotina
dum ano que passou e não deu conta do tempo
que morre e morre demoradamente
como este olhar que usas em mim e desmentes saber
na instância felicidade dum gemido que foge do umbigo metálico
que te recorda aqui e ali nas esquinas em que tudo é possível
e nada acontece.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Saltei do espelho - diria com ar feliz.
Livrei-me da imagem perpetuada em agonia,
Presa a uma moldura usada
E suada por todos os que nela se reflectiram.
Saltei do espelho para o incerto.
Fui mordida vezes sem conta...

Mordi(-te) e sobrevivi.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

A minha Casa de Vidro

Passeio os olhos pelo consolo
Que alimento num papel amarrotado
Gasto pelo sonho interrompido
Dum projecto inacabado...
A minha casa de vidro.

Era linda, sabias?
Mas frágil (não passou dum rabisco).

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Inauguro o dia
Com o resvalar imagético da noite (mal) passada.
O gesto quase inato de olhar para o relógio
E ver passar o tempo do luto sorumbático
Na procura constante das Horas que te pedem
(Que me pedem).
Tapo os olhos para não ver
As paredes brancas que me insultam o tédio
Medonho...
A dor - quase evadida - do corpo frio
É capturada a cada instante seguro
Pelo terror lacinante de te ver
(E não te ter).

O que fizeste contigo Joana?

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Ver-te

E de repente nasces assim
Uma palavra,
Um sonho,
Uma visão,
Uma lembrança...

Por morrer.
Como esta lágrima.