segunda-feira, 9 de julho de 2007

Meia Hora

Ao longe o idioma parecia irreconhecível. A voz distorcida, quase se afogava no barulho ensurdecedor da guitarra. As cordas arranhavam os dedos, já sem memória daquilo.

Não tinha o rosto de hoje nem o daquele tempo, crescido de todos aqueles pensamentos, envelhecido talvez. Quantos anos teriam passado desde aquela paisagem? Os suficientes para que fingisse ter-se esquecido sem que isso lhe pesasse na consciência [as rugas na memória costumam ser esconderijos perfeitos para verdades inconvenientes].

Sem saber como, dava sempre por si a esforçar-se em alisar a lembrança... Como era a voz dela? Afinada? Nao se lembra. Era forte! Tão forte como ela. Uma força tão grande que desfalecia em fraquezas sempre que ninguém estava a ver, sempre que olhava a guitarra abandonada e não havia dedos para a tocar, sempre que se lembrava daquela vista...

Havia pinheiros e um rio. Havia os olhares mais enlaçados do mundo. Havia aquilo que se nunca mais houve: eles. Havia dias em que o mundo se chamava saudade... Em que a vida era uma dor liquida.

Ele estava velho, os olhos assim calmos, assim vagos, assim vazios, assim... mortos. Quando foi que se perdeu da mão dela e se deixou desenlaçar pela ausência? Quando foi que se esqueceu do caminho de volta? A viagem de dois anos transformou-se em décadas. Séculos no desespero dela. Ela esperou até ao último segundo que pode.

De todas as artes que dominava a única que deixou escapar foi a de ser feliz.

O nervosismo da culpa pingava-lhe da testa, o desgosto rompia pelos olhos, rolava cara abaixo até se perder na barba mal aparada do queixo.

Depois duma vida, ele decidiu voltar.Precisava tê-la de volta. Queria apertá-la nos seus braços a todo o custo. Apagaria todos os anos de sofrimento. Enfrentaria o mundo por isso.

Chegou meia hora atrasado.

Os pinheiros daquela paisagem não lhe serviram de nada naquela hora. Não eram tão fortes como ela.

Ela tinha-se entregue a um carvalho.

Corpo, alma...

E pescoço.

[Tantos anos e nem chegaram a ver o nascer do Sol].

Meia hora.

1 demências:

Anónimo disse...

Gosto deste texto, suscita muito no dialogo que estabelece com o leitor. Não é todos os dias que leio qualquer coisa que nos faz querer responder e perguntar de volta. Mais importante do que esse eco, é o facto de conservar esse desafio ao silêncio.

Vejo que estás bem. Beijos do outro lado do mundo.